quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A última fronteira rodoviária

Pela primeira vez, carros trafegam na BR-364 no inverno. O sonho a um passo da realidade
Ela nasceu no Espírito Santo. Ele, na Bahia. Juntos há 12 anos, Alessandra Alves da Silva Moreira, 31, e José Roberto, 31, deixaram Barcelona, na Espanha, onde ela trabalhou de babá e ele, na construção civil, e vieram para o Acre, rever uma parte da família que mudara para o Estado. Chegando pelas terras de Galvez, o casal decidiu fechar a pequena taberna que abrira na periferia de Rio Branco para montar um negócio promissor e inédito em Manuel Urbano, no Acre: uma sorveteria à beira da BR-364. Acredite: não existia nenhuma. E talvez não por falta de ideia, mas de condições. Até pouco tempo atrás esse trecho da estrada não era asfaltado e ficava fechado no inverno. Energia é algo possível graças ao programa Luz para Todos, que já alcançou quase toda a extensão da estrada. E sem energia, não há como ter sorvete. Em outras palavras, o asfalto traz, além de tráfego, inúmeras possibilidades econômicas.
Ponto de encontro de motoristas, parada obrigatória de caçambeiros e lugar de lazer para os moradores que vivem nos arredores, a sorveteria oferece sorvetes caseiros, servidos com esmero pelo casal de proprietários. E, para atender com maior zelo os moradores da região, os planos são de ampliar o pequeno comércio e ter sessões de filmes durante as noites. O sonho de Alessandra é se formar em Medicina, por isso trabalhou na Espanha, para juntar o recurso necessário, e agora pretende estudar em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Ela conta como chegou ao Acre: “Eu nasci na Bahia e há alguns anos minha mãe veio para Rio Branco. Nós viemos visitá-la e acabamos ficando. Compramos uma área de 100 hectares aqui na beira da estrada e decidimos que era melhor vir aventurar a vida aqui, vendendo sorvetes, aproveitando o movimento, do que ter uma pequena taberna num bairro da periferia. E o nosso plano é tornar o comércio um ponto de ônibus”, disse.
A obra com dias contados
O vai-e-vem de caçambas carregadas com material para os trechos, os trabalhadores com seus macacões coloridos, o ronco dos tratores e as frentes de trabalho ao longo da BR-364, entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, estão com os dias contados. O sonho de concluir a BR nunca esteve tão perto do fim e 2011 entra para a história como o primeiro ano em que a estrada não foi fechada para o tráfego durante o inverno.
 O ano de 2011 foi de muito trabalho na BR 364 para garantir tráfego também durante o inverno (Foto: Sérgio Vale/Secom)
O ano de 2011 foi de muito trabalho na BR 364 para garantir tráfego também durante o inverno (Foto: Sérgio Vale/Secom)
As primeiras chuvas começaram a cair ainda em setembro, anunciando a pressa do inverno amazônico em chegar. Chuva no céu, máquina parada na estrada. E a água foi recebida com olhos de dúvida, de quem passou a vida a esperar pelo fim da obra e agora, tão perto do fim, assistiu, da janela de casa, às obras serem interrompidas pelas águas.
Nem o início do inverno foi capaz de conter o esforço de terminar a BR-364. Mas, dessa vez, a esperança foi renovada com uma notícia que traz novo alento. Veículos de passeio, ônibus e pequenos caminhões, pela primeira vez em 43 anos - desde que a estrada começou a ser construída -, não serão impedidos pelas chuvas de cruzar a última fronteira rodoviária brasileira.
Cerca de R$ 300 milhões investidos na BR-364 em 2011
Euclides da Cunha, em 1905, encerrou uma expedição em que percorreu todo o Purus e escreveu sobre a necessidade de uma rodovia ou ferrovia que integrasse o Estado. Com a assinatura do Tratado de Petrópolis e a definição dos limites territoriais acreanos, uma comissão é formada com o objetivo de estabelecer a unidade política e administrativa do Território do Acre. Pouco mais de 50 anos depois, em 2 de fevereiro de 1960, o presidente Juscelino Kubistchek decide integrar o Brasil e assina decreto estabelecendo a construção da BR-364 durante uma reunião com governadores do Norte. A história, iniciada no início do século está perto do fim. A estrada federal, que se inicia em Limeira, no interior de São Paulo, e se encerra em Cruzeiro do Sul, atravessando os vales do Purus e Tarauacá/Envira, será inaugurada no próximo ano. Pontes, bueiros e a maior parte dos 656 quilômetros de asfalto que cobrem o trecho acreano da rodovia já estão concluídos, e o desafio final se resume a pouco mais de 20 quilômetros, entre os municípios de Manoel Urbano e Feijó, próximo ao Rio Jurupari.
O ano da colheita
Diretor do Deracre, Marcus Alexandre, e equipe, foram incansáveis na missão de coordenar e fiscalizar os trabalhos ao longo da BR 364 (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Diretor do Deracre, Marcus Alexandre, e equipe, foram incansáveis na missão de coordenar e fiscalizar os trabalhos ao longo da BR 364 (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Em 1999, o governador Jorge Viana, ao assumir o governo, decidiu entrar em guerra pela construção da BR-364. Até então a estrada ficava a maior parte do tempo fechada, e o primeiro passo foi reabri-la no período do verão. Não havia nem pontes nem bueiros, o que dificultava ainda mais o tráfego. O governo anterior contribuiu asfaltando um trecho que vai de Cruzeiro do Sul à comunidade Santa Luzia e entre Rio Branco e Sena Madureira.
Mas o pouco avanço nos dois trechos asfaltados da BR não permitiam sua reabertura durante o verão sem que um grande esforço fosse feito, e, aos primeiros raios de sol do ano, máquinas e homens entravam na floresta para lutar contra a lama e garantir a passagem dos veículos. “De 1999 para cá as reaberturas foram se tornando cada vez mais rápidas e por um período maior, pois as obras da estrada iam avançando e permitindo melhor trafegabilidade”, explica Marcus Alexandre, diretor do Departamento de Estradas de Rodagem do Acre (Deracre).
Mais de R$ 1 bilhão foram investidos na BR-364 nos últimos 4 anos
Marcus Alexandre lembra que, em 2007, Tarauacá e Cruzeiro do Sul ficaram ligadas no inverno com a pavimentação do trecho. Em 2010 foi a vez do trecho Sena Madureira/Manoel Urbano, pondo fim ao isolamento da população do município, que agora, fica a 40 minutos de Sena Madureira. Este ano, o trecho de 69,5 quilômetros a partir do Rio Liberdade foi entregue restaurado pelo governador Tião Viana. O pior trecho da estrada, um dos mais difíceis na verdade, entre Manoel Urbano e Feijó, está vestido com capa asfáltica, permitindo a passagem de veículos mesmo com as fortes chuvas amazônicas.
Todas as pontes da BR 364 estão com passagem liberada, o que garante a trafegabilidade no período de chuvas (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Todas as pontes da BR 364 estão com passagem liberada, o que garante a trafegabilidade no período de chuvas (Foto: Sérgio Vale/Secom)
“Este é o ano da colheita na BR-364. Foram muitos anos investindo nas obras, nas pontes, nos bueiros, na pavimentação. Agora, pela primeira vez, a estrada está em condições de trafegabilidade no inverno, todas as pontes estão com passagem liberada e algumas, como a de Cruzeiro do Sul e Tarauacá, já foram entregues. Foram muitos anos semeando, cultivando, e agora chegou o tempo de colher o fruto de todo esse esforço de gigante que fizemos”, comemora o diretor do Deracre.
As últimas frentes de serviço
Este ano, 1.200 equipamentos (entre máquinas e tratores) e 3 mil homens trabalharam na BR-364 de forma direta
Marcus Alexandre explica que ainda há três frentes de serviço na BR-364, e que elas só serão desfeitas no último raio de sol, quando o inverno resolver descer com impietude e for, de fato, necessário pendurar os macacões e estacionar as máquinas.
“Ainda estamos em obra na 'variante' em Cruzeiro do Sul, para levar o asfalto até a saída para Rodrigues Alves. Esse trecho encurta um pouco o caminho e por isso é importante. O anel viário em Feijó, que liga o Rio Envira e a ponte do igarapé Diabinho até o centro do município também está em obras, mas com passagem liberada. E a última era a frente do Jurupari, a chamada 'terra do meio', que conseguimos prepará-la para o inverno. Vamos deixar um equipe de manutenção na estrada até maio do próximo ano”, explicou.
 
O quê?
A BR-364 se inicia em Limeira (SP), vai até a divisa com Minas Gerais, passa por Goiás, Mato Grosso e Rondônia antes de chegar ao Acre, e se encerra em Rodrigues Alves, no extremo oeste acreano, cruzando Rio Branco, Bujari, Sena Madureira, Manoel Urbano, Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul.
Pra quê?
Antes da construção da BR-364, só era possível chegar ao Acre de avião. A estrada de ferro Madeira-Mamoré ligava Porto Velho (RO) a partir de Guajará-Mirim (RO) e as balsas permitiam chegar à capital de rondoniense por Manaus (AM). Mas para chegar à capital acreana não havia ferrovia e o Rio Acre passou a não oferecer trafegabilidade para grandes balsas. O transporte rodoviário era inexistente e nem Rondônia nem o Acre eram ligados aos demais Estados por meio de rodovias. O trecho entre Cuiabá (MT) e Porto Velho foi asfaltado em 1983.
Quando?
Em 1958, o presidente Juscelino Kubistchek decide construir a estrada. Dez anos depois, o 5º Batalhão de Engenharia de Construção (hoje, o 7º BEC), inicia a abertura da rodovia, com traçado da estrada. Em 2011, 43 anos após o início da construção, pela primeira vez a estrada se mantém trafegável em toda sua extensão no período de chuvas.
Como?
A BR-364 foi dividida em 20 lotes, para evitar que uma única empresa ganhasse, sozinha, a licitação da obra. As construtoras Canter, Colorado, Construmil, Etam, JM, Meta e Cidade, além da Fidens - que não está mais na construção -, são responsáveis pelo trabalho.
Há três conjuntos de construção. O primeiro compreende o trecho Sena Madureira/Feijó (224 quilômetros). O segundo, entre Tarauacá e Cruzeiro do Sul, é de restauração de 89,3 quilômetros, entregues este ano pelo governador Tião Viana. E o terceiro conjunto se encarregou das pontes sobre os rios Envira, Purus, Tarauacá e Juruá.
 
“Pra ir ao vizinho tinha que levar um terçado [facão] pra abrir o caminho.”
Helena Gomes dos Santos e a BR-364 compartilham 23 anos de história em comum. Tempo em que a paciência exigia de três a cinco dias numa canoa, dentro dos rios Jurupari e Envira, até chegar a Feijó.
Quando Helena deixou para trás a família e decidiu acompanhar o marido até um pedaço de terra na beira da estrada, a 364 se resumia a um caminho de serviço. O sonho, no entanto, já era o mesmo de hoje, compartilhado com todos os moradores: ver a BR concluída.
Helena e a BR 364 compartilham uma história de vida, um marido, filhos, netos e sonhos. Muitos sonhos (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Helena e a BR 364 compartilham uma história de vida, um marido, filhos, netos e sonhos. Muitos sonhos (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Sentada na varanda do restaurante que abriu em 1999, próximo ao Rio Jurupari, ela olha o movimento da estrada enquanto os netos brincam ao redor. Quem chegar para comer precisa esperar a galinha caipira, criada no quintal, ser preparada. Hoje a logística da estrada não é a mesma de 10 ou 20 anos atrás, quando caminhões formavam filas que se estendiam por vários quilômetros, esperando que o da frente desatolasse ou o sol secasse um pouco a lama da estrada e permitisse, enfim, a passagem.
Nessa época um trecho curto significava uma distância longa demais a ser percorrida e demorava horas. Isso explica restaurantes não tão distantes assim um do outro analisados do ponto de vista atual.
Próximo ao Rio Jurupari, pelo menos três estabelecimentos fornecem almoço e janta aos visitantes.
Após seis meses de namoro com o professor Franscico, Helena decidiu deixar a casa dos pais e casar. O destino seria uma casinha de madeira, à beira da estrada, que então não passava de um caminho que só era aberto no verão, e no inverno até animais tinham dificuldades em atravessar. A mata cobria o que seria a estrada, a única coisa que passava era o sonho de mudança.
A gente só comia o que plantava: arroz, macaxeira, milho. Carne era de caça ou peixe. Se alguém adoecesse, precisava enfrentar até cinco dias de canoa até Feijó. Muita gente adoeceu e não sobreviveu. São 23 anos de sofrimento nessa estrada. Agora, não, está bem mais fácil. Incomparável. A gente pega um carro aqui e com um pedaço está na cidade. E esse ano a BR não deve fechar. É o sonho da gente virando realidade, disse Raimunda.
A família não gostou muito quando Raimunda resolveu sair de casa. “Mas, o que há de fazer, não é mesmo?”, indaga. Hoje ela tem três filhos, uma nora e dois netos.
Ela continua sentada em sua varanda, espiando o sonho se tornar realidade. Mas este ano o brilho nos olhos dela têm um quê a mais de alegria.
Os municípios e a nova dinânica
BR 364 reflete os sonhos de milhares de pessoas que moram às margens da estrada que conectou os municípios acreanos (Foto: Sérgio Vale/Secom)
BR 364 reflete os sonhos de milhares de pessoas que moram às margens da estrada que conectou os municípios acreanos (Foto: Sérgio Vale/Secom)
Antes isolados, agora, lugares que, além de fazer parte do caminho, oferecem atrativos aos visitantes. A partir de Rio Branco, a BR-364 passa pelos municípios de Bujari, Sena Madureira, Manoel Urbano, Feijó, Tarauacá, Rodrigues Alves e termina em Cruzeiro do Sul. Rio Branco e Sena são ligados desde 1998. Manoel Urbano, que vivia o drama do isolamento durante o inverno mesmo estando a menos de cem quilômetros do asfalto, comemora, desde 2010, o direito de ir e vir a qualquer hora. A partir de Feijó o asfalto permite comunicação com Cruzeiro do Sul. O trecho mais crítico da rodovia fica entre Manoel Urbano e Feijó, com 75 quilômetros de leito natural, onde duas frentes de trabalho se esforçaram para concluir a terraplanagem e aplicar o chamado asfalto frio, um tratamento superficial que permite a passagem de veículos mesmo em época de chuvas.
Mapa da BR
Trecho
Distância
Rio Branco/Sena Madureira
145 km
Sena Madureira/Manoel Urbano
81 km
Manoel Urbano/Feijó
143 km
Tarauacá/Cruzeiro do Sul
258 km
A nova Manoel Urbano
A história do município de Manoel Urbano pode ser dividida em duas partes, sem medo de errar: antes e depois da estrada. A BR-364 é um divisor de águas na cidade, que vivia isolada e sem perspectivas.
Antes, era necessário um dia inteiro de viagem de carro traçado ou três dias de barco até Sena Madureira. Em outros tempos, movimento na pequena cidade era algo restrito à época do verão.
Visitar amigos e parentes em outro município só era possível em alguns meses do ano. Se alguém adoecesse e precisasse de tratamento na capital teria que ser removido de avião. Esse retrato do isolamento não faz mais parte de Manoel Urbano.
Em 2010, a BR 364, no trecho entre Sena Madureira e Manoel Urbano, pela primeira na história, ficou em condições de trafegabilidade, com um tratamento superficial na estrada.
Fonte: agencia.ac.gov.br

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